Brasil deveria
aprender com a China o valor do sistema baseado no mérito
Gustavo Ioschpe conta em cinco capítulos como funciona o sistema
educacional que fez do país uma potência.
CAPÍTULO 1
OS ALUNOS E SEUS PAIS
A história de Sun
Juntao, de 16 anos, é uma entre milhões do fabuloso arsenal de educação
em massa que une escolas, alunos e pais na China
Encontrei Sun
Juntao, 16 anos, às 7h30 da manhã perto do ponto de ônibus onde
desembarcava, em uma das tantas largas e movimentadas avenidas de Xangai, a
maior metrópole chinesa. A caminho de sua primeira aula do dia, de matemática,
Juntao estava paramentado com roupas de marcas esportivas, ostentava um
ralo bigodinho do qual provavelmente se arrependerá no futuro e falava com
aquela mistura de entusiasmo, ingenuidade, determinação e timidez próprios da
adolescência. O extraordinário na cena era o fato de ser domingo e Juntao estar
indo para uma escola particular, onde receberia aulas de reforço. Mais
tarde lá estava ele, com mais vinte alunos sentados em duas fileiras de mesas
retangulares, separadas por um corredor. A sala não tinha ar-condicionado,
monitor de televisão, microfone ou outro aparato tecnológico: só mesas,
cadeiras e uma lousa. A aula era ministrada por um professor jovem, de 27 anos.
Foi uma das aulas mais pesadas a que já assisti: sem fazer nenhuma concessão ao
fato de ser um domingo de manhã, freneticamente o professor resolveu problemas
de geometria por quase duas horas, sem intervalo, sem fazer muitas perguntas
aos alunos nem esboçar algum sinal de senso de humor ou apelar para a
espetacularização das aulas dos cursinhos brasileiros. Ninguém reclamou, nem se
mexeu muito, nem saiu para ir ao banheiro. Depois daquela aula, um intervalo de
dez minutos e mais duas horas de aula de química. Assim são todos os fins de
semana de Juntao. Assim são os fins de semana de milhões e milhões de
adolescentes chineses que lutam para superar milhões de colegas e entrar em uma
universidade de primeira linha.
Juntao quer mais.
Quer ser um dos melhores advogados do mundo, formar-se na China e fazer
mestrado em Stanford, na Califórnia, do outro lado do Oceano Pacífico. Para
chegar lá, ele precisa obter um ótimo resultado no Gao Kao, o temido e cobiçado
exame nacional de admissão universitária. A nota no Gao Kao determina a universidade
na qual o aluno será aceito. Por isso Juntao se esforça tanto. Ele acorda
diariamente às 6 da manhã. Enfrenta um trajeto de quase uma hora de ônibus para
chegar a sua escola. Entre 7h10 e 8 horas, lê com seus colegas livros didáticos
da matéria que está estudando, em sala de aula, sem professor. Às 8 começam as
aulas. Perto do meio-dia há uma pausa de uma hora e quinze minutos para o
almoço, servido no refeitório da escola. À tarde, mais quatro períodos de aula.
Às 5 ele vai para casa. Chega por volta das 18h30. Durante uma hora, descansa,
toma banho e janta. Aí faz o dever de casa por, normalmente, três horas
diárias. Às 22h30 vai dormir, e o ciclo recomeça no dia seguinte. Descanso, só
aos sábados, mas por poucos meses: no ano que vem ele fará Gao Kao e
frequentará aulas de reforço aos sábados também. Como praticamente todos os
jovens que encontrei, Juntao não tem namorada, não vai a baladas, não usa
drogas e não fuma. Apesar do embaraço causado à minha tradutora, que só fez a
pergunta depois da minha insistência, quando o questionei sobre o que
aconteceria se ele, involuntária e inadvertidamente, se apaixonasse por alguém
nessa idade, a resposta veio rápida: “Espero até depois do Gao Kao”.
A obsessão dos
chineses pelo estudo é o primeiro dado para entender a notícia, divulgada no
fim do ano passado, que abalou profundamente toda a compreensão da educação no
mundo: Xangai, província chinesa, tinha tirado o primeiro lugar em todas as
áreas aferidas (matemática, ciências e leitura) no mais importante e respeitado
teste internacional de qualidade educacional, chamado Pisa. O teste, realizado
a cada três anos pela OCDE (o clube dos países desenvolvidos), mede o
conhecimento de jovens de 15 anos de idade. Começou a ser realizado no ano 2000
em 32 países (entre eles o Brasil, que ficou em último lugar) e, na edição de
2009, contou com 65 participantes (ficamos novamente na rabeira: entre a 53ª e
a 57ª posições). Em suas edições anteriores, o topo do ranking era ocupado
pelos suspeitos de sempre: Finlândia, Coreia do Sul, Japão, Canadá. O teste
confirmava a crença de que renda e qualidade educacional estão intimamente
associadas: só os países mais ricos do mundo conseguiriam produzir sistemas top
de educação. Mesmo no teste de 2009, países de nível de desenvolvimento
semelhante ao chinês ficaram muito atrás dos países ricos: na área de leitura,
o foco da edição de 2009, a Turquia ficou em 41º lugar, a Rússia em 43º, o
México em 48º e o Brasil em 53º. Xangai ficou em primeiro lugar, com uma
dianteira considerável sobre todos os países desenvolvidos, em todas as áreas
avaliadas.
Xangai é uma
província e não um país, como a maioria dos outros participantes do teste. É
uma província mais rica (com renda igual a duas vezes e meia a média chinesa).
Mesmo com essas ressalvas, o feito é incrível. A renda per capita de Xangai em
2010 foi de 11 000 dólares. A Coreia do Sul, segundo lugar em leitura, tem
renda de quase 21 000. A Finlândia, terceiro lugar, 44 000, quase a mesma de
Singapura, quinto lugar. A renda média de Xangai é igual à brasileira. Ainda
que Xangai seja um pequeno pedaço da China (tem um sétimo da área do estado do
Rio), com população de 19,2 milhões de pessoas, a província é maior do que 42
dos 65 países participantes do Pisa. É uma região bastante complexa: 11% de
seus habitantes vivem na zona rural e 54% dos alunos das primeiras cinco séries
são filhos de residentes que vieram de outras províncias para trabalhar em
Xangai.
O governo dá as
condições e as famílias cuidam de aproveitá-las da melhor maneira. A família de
Juntao é um bom exemplo. A mãe trabalha em um escritório de contabilidade e o
pai é assistente de logística em uma fábrica. Eles estudaram até o fim do
ensino médio. Seus avós maternos foram agricultores, os paternos, operários —
estudaram só até o fim do ensino fundamental. Juntao, filho único, mora com os pais
em uma quitinete de 40 metros quadrados. O rapaz tem um quarto só para si, para
que possa se concentrar nos estudos. Apesar da renda módica dos pais, eles é
que pagam as escolas de reforço do filho, e também seus estudos. Na China, só
os níveis compulsórios de ensino — do primeiro ao nono ano — são gratuitos. Os
três anos de ensino médio são pagos, até nas escolas públicas. Mesmo nos níveis
gratuitos, os pais pagam o uniforme, o transporte e a alimentação. O estado dá
apenas os livros. Juntao é um bom aluno — média em torno de 7,5 —, mas sua mãe
cobra notas melhores. Até quando tira um 9 ou 10, ela diz: “Bom, mas precisa
manter o mesmo nível”. O envolvimento emocional e financeiro das famílias
chinesas para garantir uma educação de qualidade aos filhos nos proporciona uma
grande lição.
Capítulo 2
A SALA DE AULA
A escola tem de ser
limpa, silenciosa, simples e eficiente
Três grandes
diferenças saltam aos olhos em relação às salas de aula do Brasil. A primeira é
que, tanto em Xangai quanto em Pequim, há uma bandeira nacional sobre todo
quadro-negro. A segunda é o uso constante do soft-ware de apresentação Power
Point. A terceira é a vassoura e a pá no fundo de todas as salas. Antes de irem
para casa, os alunos têm de deixar a sala de aula limpa. Equipes de limpeza só
agem nas áreas comuns.
Acompanhei várias
aulas de diversas séries. A liturgia é a mesma. A professora nunca se
atrasa, nem os alunos. A professora, de pé, se inclina em direção à classe e
diz: “Bom dia, alunos”. Os alunos, então, se levantam, se inclinam em direção à
professora e, em uníssono, respondem: “Bom dia, professora”. Não há “turma do
fundão”, conversas paralelas nem problemas de disciplina. Para quem está
acostumado com salas de aula em que uma minoria presta atenção e vários outros
grupelhos paralelos se formam, cada qual falando sobre o seu assunto, é um
espanto ver uma sala de aula com rigor chinês. No Brasil ainda se confunde
ordem com autoritarismo e a desordem é confundida com liberalidade. Dessa
confusão mental dificilmente sai uma aula que preste.
Também não há
chamada nas aulas chinesas. Cada turma tem um professor encarregado do
contato aprofundado com os alunos e sua família. Uma vez por dia, em horário
aleatório, o professor responsável passa pela turma. Se nota uma ausência, ele
telefona para os pais do faltante. É um detalhe simples, mas pense em seu
efeito. Se um professor tem oito períodos por dia e gasta, digamos, três
minutos fazendo a chamada, quase meia hora de aula do dia terá sido
desperdiçada com a verificação de presença.
CAPÍTULO 3
OS PROFESSORES
São todos adeptos
do gênio Albert Einstein: o sucesso vem de 1% de inspiração e de 99% de
transpiração
Se raramente um
aluno falta, um professor, nunca. Cui Minghua, 55 anos, diretora de escola em
Pequim, contou-me estar na carreira há 32 anos, dos quais mais de vinte como
professora. Em todo esse tempo, tirou uma única licença médica para se submeter
a uma operação. Fora isso, jamais deixou de cumprir seu dever diário de educar.
Não há nada de
especial na carreira de professor em Xangai. O salário não é exatamente
atraente. Nos três primeiros anos de carreira, fica entre 30 000 e 40 000
iuanes por ano, ou algo entre 400 e 500 dólares por mês, quase metade da renda
média salarial da região. Nessa fase, muitos professores recorrem a outros
trabalhos para complementar a renda. Os melhores podem até dobrá-la dando aulas
particulares ou em escolas de reforço. Os professores de nível médio recebem
72 000 iuanes por ano. Os melhores entre eles ganham 90 000. Os bônus por
desempenho acima da média podem chegar a 40% do valor do salário. Mas lá, assim
como cá, ninguém se torna professor pelo salário.
As diferenças com o
Brasil começam na formação do professor. São três grandes diferenças. A
primeira é que, na China, a prática de sala de aula se faz muito mais presente
do que no Brasil. Ela começa já no segundo ano do curso, quando o futuro
professor acompanha aulas em escolas regulares duas vezes por semana durante
oito semanas e depois faz estágio de meio ano no penúltimo semestre do curso. A
segunda é que as escolas chinesas são mais pragmáticas e diversificadas na
escolha de seus pensadores pedagógicos. Há um esforço constante de se abrir ao
mundo e ver o que funciona, e pinçar de cada lugar as melhores ideias. O Brasil
ainda é dominado quase inteiramente pelo construtivismo. A terceira, e mais
decisiva, é a ideologia. Nas escolas chinesas os estudantes têm seu momento
diário patriótico e de louvação do Partido Comunista, mas, findo esse ritual, a
ideologia sai de cena. No Brasil, os professores são formados em universidades
tisnadas por ideologias de esquerda e instados a nunca ser “neutros”, nem nas
aulas de matemática ou de física. E eles acreditam nisso. É o desastre
costumeiro.
As universidades
chinesas entregam professores competentes ao mercado, mas o que os torna
excepcionais é o ritmo intenso e colaborativo de trabalho ao qual se submetem
quando chegam às escolas. Aí eles passam a integrar um “grupo de estudos dos
professores”, que é sem dúvida a inovação mais importante da educação chinesa.
Cada professor faz parte de três grupos de estudo. Um com os colegas que
ensinam a mesma matéria para a mesma série, que se encontra uma vez por semana
para preparar as aulas. O segundo grupo é formado pelos colegas de disciplina
de todas as séries da mesma escola. Esse se encontra duas vezes ao mês. O
terceiro é formado pelos professores da mesma disciplina e série do seu bairro,
que também se encontra duas vezes por mês. Nesses dois últimos grupos, o
objetivo é compartilhar práticas de ensino de sucesso. Somando os três grupos,
é um regime exigente: são duas reuniões por semana, toda semana. A maioria
desses encontros leva entre duas e três horas.
O papel desses
grupos é fundamental. Faz com que as melhores técnicas sejam rapidamente
compartilhadas em toda a rede, cria uma saudável competição entre professores
(os portadores das melhores práticas recebem bônus) e ao mesmo tempo provê uma
rede de apoio e compartilhamento para todos os professores, ao contrário do
isolamento e do desamparo que vitimam seus colegas brasileiros.
CAPÍTULO 4
O EMPUXO HISTÓRICO
E CULTURAL
Os chineses sentem
que têm contas a acertar com o seu passado, e isso torna sua ascensão mais
obstinada, sua tolerância por sacrifícios maior e sua determinação de voltar a
rivalizar com as potências coloniais que humilharam a China ainda mais sólida
CAPÍTULO 5
AS POLÍTICAS PÚBLICAS
Sob Mao Tsé-tung, o
estado chinês tentou sufocar o pensamento, a técnica e o saber. Chamaram essa
loucura de Revolução Cultural. Agora o esforço é todo na direção correta
O baixo custo
relativo é o maior contraste do caso brasileiro com a arrancada chinesa rumo a
uma educação que leve o país ao posto de potência mundial de primeira linha. Em
2009, o governo chinês gastou 3,6% do PIB em educação. O setor educacional
público brasileiro aumentou seu gasto de 4,1% para 5,3 % do PIB nos últimos
sete anos e, mesmo com a qualidade do ensino não tendo melhorado em nível
remotamente semelhante, a propaganda oficial continua aferrada a esses números
como a um triunfo definitivo. Não é. O limite da profundidade do nosso
debate sobre educação parece se esgotar na discussão da meta de gastos.
Estaremos gastando 7% ou 10% do PIB em educação daqui a dez
anos?
A China sacrifica
as ideologias sempre que elas conflitam com a busca de resultado. Na educação,
isso se expressa na definição do papel do professor. A China se deu conta de
que precisava de professores bons e em grande quantidade. Dadas suas carências,
montou um sistema em que o professor sai da faculdade mediano, e então é
constantemente trabalhado e ajudado para que consiga ministrar aulas
excepcionais. Um sistema em que os bons professores e as boas escolas subjugam
os maus mestres das escolas ruins. Os chineses entenderam que é melhor ter
quarenta alunos com um bom professor do que duas turmas de vinte, uma bem
ensinada e outra sob a batuta de um incapaz. O professor é o centro
gravitacional de todo o sistema. Pragmatismo, meritocracia, professores bem
formados e premiados com dinheiro pelo bom desempenho, estudantes disciplinados
e motivados por suas famílias. Essa é a fórmula do combustível da arma secreta
chinesa para conquistar o mundo: a educação.
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